domingo, junho 25, 2006

Onde Canta o sabiá

Onde canta o sabiá
(Beatriz de Moraes Vieira doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense.)
O poema Canção do exílio de Gonçalves Dias se entranhou na memória brasileira e ajudou a fixar a idéia da brasilidade: a terra, o sentimento de exílio ou saudade e a língua passam a se confundir com a imagem do país

"Minha terra tem palmeiras,/onde canta o sabiá;/As aves, que aqui gorjeiam,/Não gorjeiam como lá"... Que brasileiro nunca ouviu estes versos algum dia, saudando a terra onde as aves, os amores, as flores são melhores do que em qualquer outro lugar? Escrito por Gonçalves Dias, em 1843, durante o Romantismo, com suas preocupações com a terra natal e a origem da nação, o poema Canção do exílio passou das antologias poéticas aos manuais escolares. Seus enunciados entraram em nossa história cotidiana desde meados do século XIX e ao longo do XX, de modo que certas imagens (o sabiá, a palmeira) e alguns versos soltos do poema ("nosso céu tem mais estrelas"; "não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá" etc.) se tornaram fatos comuns do imaginário brasileiro.
A Canção do exílio é um dos textos-fundadores de nossa cultura. Criaram-se a partir dele imagens de identidade brasileira, num percurso que pode ser seguido através de quatro grandes linhas ou matrizes.
A Canção do expedicionário de Guilherme de Almeida - ligado ao contexto modernista dos anos 30 e 40, manteve certo tom tradicional - canta a natureza brasileira e retoma símbolos nacionais como a Moema, a Iracema, o Sabiá, dialogando também com as modinhas do cancioneiro popular: "Deixei lá atrás meu terreiro,/meu limão, meu limoeiro,/meu pé de jacarandá/lá no alto da colina/onde canta o sabiá."
A partir do movimento modernista, a retratação otimista da paisagem tropical começou a alterar-se, conforme se tomava consciência dos problemas econômicos e culturais legados dos tempos coloniais. "Sabiás", "palmeiras", "minha terra" aparecem desestabilizando os valores e sentidos consagrados pela tradição anterior. Assim, num segundo tipo de imagem, as releituras da Canção do exílio vinculam natureza e cultura, relendo o poema-fundador com perspectiva crítica, apontando para ruínas culturais, esquecimentos, lacunas políticas e sociais.
Oswald de Andrade, no Canto de regresso à pátria (1925), faz referências à escravidão: "Minha terra tem palmares/Onde gorjeia o mar", e ao progresso urbano dos anos 20: "Não permita Deus que eu morra/Sem que eu volte para São Paulo/Sem que veja a Rua 15/E o progresso de São Paulo." Já Murilo Mendes, com a Canção do exílio de 1955, em seu nacionalismo modernista, aponta na realidade sociocultural brasileira a presença estrangeira, à qual se vinculam elementos locais e dificuldades econômicas: "Minha terra tem macieiras da Califórnia/onde cantam gaturamos de Veneza./ (...)/os filósofos são polacos vendendo a prestações./(...)/Nossas frutas mais gostosas/mas custam cem mil- éis a dúzia./Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/e ouvir uma sabiá com certidão de idade!"
O poeta Mário Quintana, no poema Uma canção (1962), associando à "minha terra" as imagens de falta e a perplexidade das interrogações, diz: "Minha terra não tem palmeiras.../E em vez de um mero sabiá,/Cantam aves invisíveis/ Nas palmeiras que não há." Provocando estranhamento, este conjunto de imagens apresenta um ideário diverso do anterior, pois parodia aqueles textos marcados pela idealização excessiva da nação, fazendo lembrar ao leitor as "outras caras" do Brasil.
Na terceira matriz de imagens de brasilidade temos a associação entre terra natal e o sentimento de exílio, que é dado pela temática temática da ausência e da distância, tanto em termos geográficos, quanto em termos simbólicos, pela inadequação da pessoa ao contexto social ou político. Para além da saudade romântica da pátria, trata-se da inconformidade com determinados parâmetros ou situações vigentes, originando enunciados de caráter crítico e existencial. O Brasil surge como o espaço que circunscreve o poeta fisicamente, mas não o abriga simbolicamente: sem o sentido de acolhimento, o país não é concebido como terra natal, e esta falta produz as imagens de melancolia que dão o tom do exílio.
Em Europa, França e Bahia (1930), de Carlos Drummond de Andrade, o sentimento nacionalista característico daqueles anos era transfigurado em alheamento após uma viagem pelo mundo: "Meus olhos brasileiros se fecham saudosos./ Minha boca procura a Canção do exílio./Como era mesmo a Canção do exílio?/ eu tão esquecido de minha terra.../Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá!" O sentido de exílio se dá por uma distância que é construída pelo esquecimento.
Nos anos 60, a música tropicalista Marginália II, de Gilberto Gil e Torquato Netto, durante a ditadura militar, desloca a imagem de brasilidade harmônica para o campo da ironia e da dor: "Minha terra tem palmeiras/onde sopra o vento forte/dá fome, dá medo e muito,/ principalmente da morte." Em 1968, quando se acirrou a repressão ditatorial, Chico Buarque e Tom Jobim compuseram Sabiá, que venceu o III Festival Internacional da Canção realizado pela TV Globo, retomando a relação perto-longe através do tema do exílio dentro de casa, da saudade de uma terra natal na qual se está: "Vou voltar, sei que ainda /Vou voltar para o meu lugar/Foi lá e ainda é lá/Que eu hei de ouvir cantar/Uma sabiá/(...)/ Vou deitar à sombra de uma palmeira/ Que já não há/Colher a flor que já não dá/(...)/ E anunciar o dia." Travestidos de saudade de uma terra natal e em diálogo aberto com o poema de Gonçalves Dias (processo caro à construção do nacionalismo ditatorial), sentidos de liberdade política são sutilmente tecidos no texto, que, fora de seu contexto sociopolítico, poderia parecer apenas um mero e belo canto de retorno à pátria.
Ainda sob a ditadura, Cacaso, um dos poetas da "poesia marginal" dos anos 70, afina a ironia em Jogos florais: "Minha terra tem palmeiras/onde canta o tico-tico./ Enquanto isso o sabiá/vive comendo o meu fubá.//Ficou moderno o Brasil/ficou moderno o milagre:/a água já não vira vinho,/ vira direto vinagre."
Em fins dos anos 80, quando o processo de transição democrática chegou à instauração da Nova República, o poeta-cronista Paulo Mendes Campos publicou no Jornal do Brasil (6/10/1988) sua Nova canção do exílio: "Minha terra tem coqueiros,/sabiá já foi pro brejo.../Brasileiras, brasileiros,/ daqui vou pro Alentejo!" - uma resposta à propaganda oficial dos militares que pregava na década anterior o lema "Brasil: ame-o ou deixe-o".
Também no final dos anos 80, a Canção do exílio mais recente de Affonso Romano de Sant'Anna trabalha em tom taciturno este conjunto de sentidos que associa o sentimento de desterro à identidade brasileira. Dedicado a Fernando Gabeira, intelectual banido nos anos 70 que retornou após a anistia, o texto reúne o exílio político, o exílio em terra natal e o exílio interior: "Não ter um país/a essa altura da vida,/a essa altura da história,/a essa altura de mim,/ - é o que pode haver de desolado./(...)/ E eu aqui, no nenhum-desse-lugar, estrangeiro/exilando-me ao revés"...
Neste conjunto de poemas vemos imagens diversas de exílio, criando uma tradição em que a identidade nacional se esfiapa num mundo longínquo ou arrevesado. A idéia de ser brasileiro associa-se à angústia da não-identidade; como num jogo de luz e sombra, uma das facetas da brasilidade é não se pertencer.
A quarta matriz de imagens nacionais remete à relação entre terra e língua. Este vínculo, expresso poeticamente por Camões no Renascimento português - "minha pátria é a minha língua" -, era fator necessário do processo de formação dos Estados naquele momento. Desde então, esta idéia subjaz sempre a expressões como "minha pátria" e "minha terra", marcando os discursos afirmadores da nacionalidade.
No caso dos países que foram colonizados como o Brasil, a afirmação da identidade leva à busca das peculiaridades locais, resgatando o valor da linguagem do povo e as diferenças para com a língua do colonizador: a oralidade popular e a tradição do português castiço se chocam; sob a aparência de um mesmo português, as palavras são outras, porque vêm de histórias lingüísticas distintas. Como diz o poeta José Paulo Paes no poema Lisboa: Aventuras (1988): "Pedi cafezinho/ serviram-me uma bica/quis comprar meias/só vendiam peúgas [...] positivamente/as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá". Deste modo, a busca de uma expressão lingüística autenticamente brasileira, iniciada no Romantismo e retomada pelo Modernismo, é característica de nosso processo de construção de tradições nacionais. Não à toa o próprio Gonçalves Dias foi autor de um dicionário tupi, e diversos modernistas se preocuparam com a identidade lingüística do brasileiro, como se vê no "tupi or not tupi" de Oswald de Andrade, ou no Prefácio interessantíssimo de Mário de Andrade: "A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo ão."
O conjunto de releituras da Canção do exílio, cuja linguagem carrega essa busca de autenticidade da expressão lingüística brasileira, contribui para a integração do par língua nacional/terra natal à imagem e à memória de brasilidade. Gonçalves Dias com seu poema e suas numerosas releituras compõem um quadro de imagens que ressoaram de tal modo, que construíram sentidos plurais para o Brasil. Inscritas em nossa história literária e em nossa cultura, as canções do exílio também formam o imaginário e as tradições nacionais, e assim, afinal, poesia também faz história nesta terra de sabiás, amores e ironias...

In: Nossa História. São Paulo: Vera Cruz, ano 1, nº 05, 2004



Canção do exílio

Gonçalves Dias

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Coimbra, julho de 1843, aos 19 anos

Canção do exílio I

Casimiro de Abreu

Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá
– Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros de sabiá!

Oh! que céu, que terra aquela
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas,
Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!

Daqueles céu de safira,
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país.
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho,
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado
– Desterrado –
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!

Lisboa, 1855

Canção do exílio I – meu lar

Casimiro de Abreu

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Lisboa, 1857

Canção do expedicionário

Guilherme de Almeida

I

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Do pampa, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios,
De minha terra natal.

Estribilho

Por mais terra que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:

Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil!

Estribilho

Por mais terra que eu percorra... etc.

II

Eu venho da minha terra,
Da casa branca da serra
E do luar do sertão;
Venho da minha Maria
Cujo nome principia
Na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema,
Lábios de mel de Iracema
Estendidos para mim!
Ó minha terra querida
Da Senhora Aparecida
E do Senhor do Bonfim!

Estribilho

Por mais terra que eu percorra... etc.

III

Você sabe de onde eu venho?
É de uma Pátria que eu tenho
No bojo do meu violão;
Que de viver em meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração.

Deixei lá atrás meu terreiro,
Meu limão, meu limoeiro,
Meu pé de jacarandá,
Minha casa pequenina
Lá no alto da colina
Onde canta o sabiá.

Estribilho

Por mais terra que eu percorra... etc.

IV

Venho de além desse monte
Que ainda azula no horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.

Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham, deslumbradas,
Fazendo o Sinal da Cruz!

Estribilho
Por mais terra que eu percorra... etc.
(Rapsódia que cantaram os soldados brasileiros nos campos de batalha da Europa).

Canto de regresso à pátria
Oswald de Andrade

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

Europa, França e Bahia

Carlos Drummond de Andrade

Europa, França e Bahia
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos inglêses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trust crash.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete
...para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros dentro de alguns anos

A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suiça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

Não há mais Turquia.
O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.

Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no túmulo de Lênin
...em Moscou parece que um coração enorme está batendo, batendo
mas não bate igual ao da gente...

Chega !
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
Minha boca procura a "Canção do Exílio".
Como era mesmo a "Canção do Exílio" ?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá !
(Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edições Pindorama, 1930)


Canção do exílio

Murilo Mendes

Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza
Os poetas da minha terra
São pretos que vivem em torres de ametista,
Os sargentos do exército são monistas, cubistas,
Os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir
Com os oradores e os pernilongos
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado
Em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
Nossas frutas são mais gostosas
Mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
E ouvir um sabiá com certidão de idade!

Uma canção

Mário Quintana

Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,
Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?

Mas a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus de minha terra
Eu canto a Canção do Exílio.

Pátria minha

Vinícius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."

Sextilhas românticas

Manuel Bandeira

Paisagens da minha terra,
Onde o rouxinol não canta
— Mas que importa o rouxinol?
Frio, nevoeiros da serra
Quando a manhã se levanta
Toda banhada de sol!

Sou romântico? Concedo.
Exibo, sem evasiva,
A alma ruim que Deus me deu.
Decorei "Amor e medo",
"No lar", "Meus oito anos"... Viva
José Casimiro Abreu!

Sou assim, por vício inato.
Ainda hoje gosto de Diva,
Nem não posso renegar
Peri, tão pouco índio, é fato,
Mas tão brasileiro... Viva,
Viva José de Alencar!

Paisagens da minha terra,
Onde o rouxinol não canta
– Pinhões para o rouxinol!
Frio, nevoeiros da serra
Quando a manhã se levanta
Toda banhada de sol!

Ai tantas lembranças boas!
Massangana de Nabuco!
Muribara de meus pais!
Lagoas das Alagoas,
Rios do meu Pernambuco,
Campos de Minas Gerais!

Sabiá

Chico Buarque e Tom Jobim

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá


Marginália II

Torquato Neto e Gilberto Gil

eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão:
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá
aqui o terceiro mundo
pede a bênção e vai dormir
entre cascatas palmeiras
araçás e bananeiras
ao canto da juriti
aqui meu pânico e glória
aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história
começa na lua cheia
e termina antes do fim
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá
minha terra tem palmeiras
onde sopra o vento forte
da fome do medo e muito
principalmente
da morte
o-lelê, lalá
a bomba explode lá fora
e agora, o que vou temer?
yes: nós temos banana
até pra dar,
e vender
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá

Jogos Florais

Cacaso

I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
Vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
Ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre

II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)


Nova canção do exílio

Ferreira Gullar
para Cláudia

Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos


Nova canção do exílio

Carlos Drummond de Andrade

a Josué Montelo

Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá, na palmeira ao longe.)

Ainda um grito de vida e voltar
para onde tudo é belo e fantástico:
a palmeira, o sabiá, o longe.


Outra canção do exílio

Eduardo Alves da Costa

Minha terra tem Palmeiras,
Corinthians e outros times
de copas exuberantes
que ocultam muitos crimes.
As aves que aqui revoam
são corvos do nunca mais,
a povoar nossa noite
com duros olhos de açoite
que os anos esquecem jamais.

Em cismar sozinho, ao relento,
sob um céu poluído, sem estrelas,
nenhum prazer tenho eu cá;
porque me lembro do tempo
em que livre na campina
pulsava meu coração, voava,
como livre sabiá; ciscando
nas capoeiras, cantando
nos matagais, onde hoje a morte
tem mais flores, nossa vida
mais terrores, noturnos,
de mil suores fatais.

Minha terra tem primores,
requintes de boçalidade,
que fazem da mocidade
um delírio amordaçado:
acrobacia impossível
de saltimbanco esquizóide,
equilibrado no risível sonho
de grandeza que se esgarça e rompe,
roído pelo matreiro cupim da safadeza.

Minha terra tem encantos
de recantos naturais,
praias de areias monazíticas,
subsolos minerais
que se vão e não voltam mais.

A chorar sozinho, aflito,
penso, medito e reflito,
sem encontrar solução;
a não ser voar para dentro,
voltar as costas à miséria,
à doença e ao sofrimento,
que transcendem o quanto possam
o pensamento conceber
e a consciência suportar.

Minha terra tem palmeiras
a baloiçar, indiferentes
aos poetas dementes
que sonham de olhos abertos
a rilhar os dentes.

Não permita Deus que eu morra
pelo crime de estar atento;
e possa chegar à velhice
com os cabelos ao vento
de melhor momento.
Que eu desfrute os primores
do canto do sabiá,
onde gorjeia a liberdade
que não encontro por cá.

Canção do exílio

José Paulo Paes

lá ?
ah!
sabiá...
papá...
maná...
sofá...
sinhá...

cá ?
bah!



Lisboa: aventuras

José Paulo Paes

tomei um expresso
cheguei de foguete
subi num bonde
desci de um elétrico
pedi cafezinho
serviram-me uma bica
quis comprar meias
só vendiam peúgas
fui dar a descarga
disparei um autoclisma
gritei: "ó cara!"
responderam-se "ó pá!"
positivamente
as aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá


Canção do exílio mais recente

Affonso Romano de Sant’anna
para Fernando Gabeira

1

Não ter um país
a essa altura da vida,
a essa altura da história,
a essa altura de mim,
— é o que pode haver de desolado.

É o que de mais atordoante
pode acontecer ao pássaro e ao barco
presos desde sempre à linha do horizonte.

Desde menino
previvendo perdas e ansiedades
admitia
as mobílias em mudança, galinhas
mortas na cozinha, o incêndio em plena casa
e a infância com os amigos se afogando.



Mas sobre país
eu pensava ser como pai e mãe: para sempre.

País
era o quintal e a horta a alimentar a mim
e aos filhos com a sempre zelosa sopa do jantar.
País
era como a Amazônia: desconhecimento da gente
ou como o São Francisco: inteiramente pobre e nosso.

Hoje
meu pai, cansado, já se foi
minha mãe, com fé, já se prepara
e a horta
se não deu às pragas
— já foi toda cimentada.
Meus irmãos estão dispersos. Já não conversamos
como anjos adolescentes
debruçados sobre o sexo das tardes.

No entanto, há muito elaboro as perdas
e sigo a metamorfose das nuvens. Vi os corpos
mais amados se escoando no lençol
depois de ter sentido a fé fanar-se, digamos:
— ao mais leve frêmito carnal.

E após a tensa geografia caseira
com pai e mãe, seis filhos na mesma mesa e igreja,
ano após ano, pasmo percebo
que meus irmãos iam-se partindo
como aqueles que, mais tarde, num gesto

[guerrilheiro
foram domar o dragão do castelo e a cidadela
a tropeçar nas celas e fronteiras
e a fenecer exílios e quimeras.

2

Ter ou não ter: — eis o sertão
a lei do cão, de Lampião
— embora Padinho Cícero e seu sermão.
Que tudo é deles
que me têm, detêm, retêm
o meu direito e o passaporte,
a identidade e os impostos
e o medo com que abro a porta,

que tudo é deles:
o arado e a bosta do prado,
a colheita e o mofo do pão,
o berro-boi contido e o ferro em brasa
— com que marcam a canção,

que tudo é deles:
os rios com seus mangues,
os picos da neblina assassina,
os pedágios da impotência
e a inclemência nordestina.

País. Como encontrar-se num, se mesmo o nosso quarto
[(antigo exílio)
a militar família penetra e fuxica
a vasculhar diários e delírios?
Como encontrar-se num

se a natureza do corpo
— paisagem antiga e íntima —
a milícia dos tratores desmonta e violenta
na fabril poluição?

Será que sou um palestino? alguém que já perdeu
de antemão todas as guerras? ou será que sou aqueles alemães
que vi nas margens do Reno
— cuidando de suas hortas e flores,
e sobre as derrotas e canteiros
vão refazendo seus filhos por cima da cicatriz
a carregar a encapotada alma
viva e torta?

Ter ou não ter, eis meu brasão,
ou refrão dessa impotente canção.
Se trágico é o poder
— o não poder
sempre foi triste.

Mas não posso, é proibido
não ter um país, dizem-me na alfândega.
No entanto, este não me serve, como não me serviram
os outros, quando os habitei maravilhado entre castelos
e vitrinas, entre hambúrgueres e neblinas, entre as coxas
claras das donzelas dos contos da carochinha.

Este não me serve, assim dessa maneira,
a me impingirem idéias mortas, me vestirem camisas-
de-força, fraques e cartolas tolas
— e eu sabendo que o defunto é bem maior.

— Viver é isso? — É descobrir na pele dobras
de paisagens novas, e lá fora ir perdendo a vista antiga?
— É renunciar ao ontem, refazer o ato?
e saber que em nosso corpo e país
— o amanhã é um fogo-fátuo?

E eu aqui, no nenhum-desse-lugar, estrangeiro
exilando-me ao revés, vendo o passaporte roto de traças
que transferem
para o nada
a carcomida face.

3

Mas, às vezes, em pleno tédio, em calmaria
— ao largo
fico como os parvos navegantes, à mercê dos fados
sonhando no astrolábio
chegar às Índias pelo avesso.
À espera
que um vento louco me enfune as pandas velas
desoriente-me a nau e o sangue marinheiro
e eu chegue à terra santa e profanada
onde me esperam as tribos com festões e danças.
E eu
jogando ao mar a cruz e a espada
correndo para a praia
peça para ser o menor deles
e me aquecer à luz do fogo
em meio à taba
e transformar meu vil degredo
— em eterna festa.